ENTREVISTA COM O ENG. JUSTINO VIEIRA

O Sol... esse pequeno detalhe

Publicado por Lucas Ramires em 08 de janeiro de 2018


     
LUCAS: Justino, quem é você? Conta um pouco da sua história? O que você tem feito hoje?



JUSTINO: Meu nome é Justino Vieira, formado e pós graduado pela UFF respectivamente em 1970 e 1980. Tenho um Escritório de Projetos de Estruturas de Edificações desde sempre, ou seja, há 47 anos, juntamente com minha mulher e sócia, Monica Aguiar, e já desenvolvemos cerca de 1.700 Projetos, quase todos de prédios para diversas finalidades.



Paralelamente à vida de Projetista, dei Aula estes anos todos, algo pelo que tenho uma imensa paixão: durante quarenta anos na Engenharia da UFF e, atualmente, na Arquitetura da PUC - RJ. 



Some-se a isto, e tão importante quanto, sou apaixonado por Literatura, faço um Curso de Extensão na área de Literatura (Clássicos) na PUC e escrevo ficção por puro diletantismo e que compartilho com umas poucas dezenas de amigos. 



LUCAS: Nas nossas conversas ficou claro pra mim que você vivenciou uma parte significativa da história da evolução do Cálculo Estrutural. Na sua opinião qual a maior dificuldade que os engenheiros menos experientes precisam superar para capacitarem-se para desenvolverem bons projetos e utilizarem de maneira adequada os recursos computacionais existentes? 



JUSTINO: Esse é um tema que sempre nos instiga: como formar novos Profissionais? Creio que o caminho não é muito diverso daquele que, historicamente, tem-se mostrado adequado: Um curso feito em boa Escola e levado com seriedade. Um Estágio (fundamental! equivale à Residencia Médica) em um escritório de Projeto de boa reputação e cujos Engenheiros não tenham uma rotina de tal sorte asfixiante que lhes permita ter tempo de ensinar aos Estagiários. Por fim: muita, muita persistência, algo que advém do que seria sua maior virtude: Vocação.



Ser Projetista não é uma tarefa amena. Envolve enorme responsabilidade, exige capacidade de interação e diálogo com uma equipe grande e frequentemente complexa, os prazos são sempre exíguos, o reconhecimento social é raro e, contra isso tudo, você só tem o que mencionei lá atrás: Vocação! 



LUCAS: Se você pudesse dar uma dica... a dica mais preciosa que lhe vem à mente agora... aquilo que ninguém vai encontrar em livro nenhum e é fundamental na profissão, o que você diria para um engenheiro que está começando e é apaixonado pela Engenharia Estrutural para ele avançar com segurança e sucesso na profissão?



Vou tentar responder contando uma história: Há alguns anos, um avião da antiga Varig saiu de Marabá com destino à Belém do Pará, ao Norte. Entretanto, por falha do Piloto, o avião tomou a direção contrária... O Piloto persistiu na rota equivocada até que a aeronave caiu (por falta de combustível!) com perda total do aparelho e várias mortes. 



Na época eu vi (atenção, não ouvi falar nem li, eu vi) a entrevista do Piloto onde ele atribuía o erro ao treinamento da Varig: mudara a forma de setar a bússola e ele, em vez de colocar 27 Graus, colocara 270 Graus (valores totalmente discrepantes). O entrevistador então perguntou-lhe: 



Comandante, sendo dia claro, o Sr. não notou que o Sol estava "do lado errado"? 



E eu vi, penosamente e com o coração apertado de quem também depende de máquinas, o Piloto responder: 


"... eu não voava geograficamente porque nessa era de aviões a gente voa números..."


Um detalhe, talvez um pouquinho reconfortante: durante o malfadado trajeto um passageiro se dirigiu à cabine alertando sobre o equívoco em curso e não foi ouvido. Era um Engenheiro.... 



[link para a entrevista citada]    *** Não deixe de assistir ***



Meu conselho: sem abrir mão dos fantásticos recursos ora disponíveis, confie preliminarmente no seu bom senso, na sua intuição, no seu "olfato", Não aposte cegamente no Computador pois ele é apenas uma ferramenta. Essa era a lógica do Piloto: o que é um solzinho impertinente comparado com uma bússola eletrônica tão sofisticada? 



Quando começamos a usar os programas de Cálculo eu ficava muito irritado vendo o meu pessoal dando cambalhotas na lógica para justificar um resultado computacional obviamente errado, fruto de uma modelagem equivocada, falta de sensibilidade do Programa para determinada situação, introdução falha de dados, etc, etc. 



No meu Escritório ainda tem o pôster da bela foto vintage de uns cinco adolescentes americanos, com suas calças jeans surradas, amontoados em frente ao capô escancarado de um carro da época, tentando entender qual era mesmo o defeito. Linda foto, grande aprendizado:

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Para a minha geração isso é mais fácil. Temo que, atualmente, os alunos e alunas tenham um contato muito precoce, intenso e hegemônico com os modelos computacionais. Sempre mostrei em sala a Régua de Cálculo com que trabalhei anos a fio. Mostro o "truque" dela transformar multiplicações em uma mera adição de escalas logarítmicas e chamo a tenção que a divisão era a operação inversa. Já soma e subtração.... simplesmente não eram de jeito nenhum, a Régua não fazia. Lembrava que, desde as Pirâmides do Egito até, hummm, deixe ver, os prédios de metade da década de 1970, tudo foi feito rotineiramente com essa ferramenta. Lembrava, principalmente, que na régua, o resultado de "2 X 2" é 4. Se, no problema que você estava resolvendo, isso é 0,00004 ou 4.000.000 era você que decidia. A suprema virtude do Engenheiro era ter "ordem de grandeza". Há quantos anos não escuto essa expressão, nesse mundo de gigas e nano valores.... Bem, o pasmo dos meninos era inenarrável. 



Só um adendo: Na PUC, onde dou aula, todas as salas são equipadas com recursos de data show facilmente acessíveis. Só por "parti pris" (vulgo marra rss) eu dou o Curso inteiro desenhando tudo e depois indico o que devem ver de interessante na Internet. Meu desenho, embora expressivo pelos anos e anos de prática de Projeto, é de qualidade geralmente inferior aos dos meninos da Arquitetura e nós nos entendemos perfeitamente. 



Em resumo: não sou saudosista nem um D. Quixote alucinado que se insurge contra a modernidade que, por sinal, garante meu sustento há muitos anos, mas nunca esqueça que VOCÊ tem na raiz do nome da sua profissão o seu maior trunfo: 



Engenho - Substantivo masculino; capacidade inventiva, astúcia, habilidade. 



LUCAS: Que tipo de estratégias você utiliza para não “confiar cegamente” num programa ou numa ferramenta? O que você FAZ para se resguardar da falha de um programa? 



JUSTINO: Preliminarmente acho que a melhor atitude é desconfiar de qualquer resultado que você não entenda. Certamente é falha sua ou do Programa. No primeiro caso, extremamente provável em face da atual sofisticação dos Programas, é uma oportunidade de aprender algo novo. No segundo caso, uma consulta ao fornecedor do Programa é fundamental. 



Vou dar um exemplo bem corrente desse jogo “confia x desconfia”. 



Os Programas detalham as vigas de Concreto Armado segundo uma série de parâmetros disponíveis para o usuário optar segundo suas preferências. Em tese, as vigas saem convenientemente detalhadas. Não acredite! São tantas as nuances cabíveis no detalhamento, que sempre é possível melhorar algo, ou mesmo CORRIGIR. 



Algum tempo atrás havia tanta displicência em relação à aceitação do que era detalhado que o programa que eu uso acrescentou uma tarja grande, ao lado de cada viga, dizendo que aquilo era mero estudo, não autorizado para execução. De fato, chegavam à obra vigas detalhadas, por exemplo, com ferros de 50mm que é o recurso que o Programa usa para liberar o desenho das vigas do pavimento, quando uma delas é inviável (por excesso de armação, por exemplo).



Muitos projetistas preferem calcular as lajes de subsolo - solicitadas por subpressão - colocando as cargas na direção usual (de cima para baixo) e depois editar o desenho invertendo a Armação. Já houve casos desta última providencia não ter sido feita e as vigas foram para a obra com toda a armação equivocada pela liberação do produto do detalhamento sem olhar crítico. 



Juntamente com o desenho das vigas, os programas também emitem um detalhado relatório do cálculo das mesmas. Se nem o desenho é eventualmente criticado, esse relatório, bastante enfadonho, menos ainda. Entretanto, se você consulta-lo regularmente, vai ver que, eventualmente a armação detalhada é bem maior do que a que consta no relatório. Consultando o pessoal do Programa você vai ser informado de que em duas ou três circunstâncias isso de fato ocorre, mas você só descobre isso se questionar...



LUCAS: Concordo com você, “ordem de grandeza” realmente é um ENORME diferencial. Pra mim é o que distingue um engenheiro comum de um engenheiro extraordinário. Quais referências de ordem de grandeza normalmente lhe vêm à mente quando você pensa em projeto estrutural? Pode dar exemplos? 



JUSTINO: Exemplos de "ordem de grandeza" possíveis e desejáveis em Projeto Estrutural: 



Inicialmente, uma bem simples: vigas de Concreto Armado tem altura de cerca de um décimo do vão. Isso é extremamente simples e, em alguns aspectos até simplista, uma vez que não se cogita a carga que atua na viga, entretanto funciona bastante bem como uma primeira aproximação. Não se esqueça de considerar o dobro do vão no caso de balanços. 



As dimensões mínimas que a Norma exige também são um importante balizador. Se seus cálculos apontam algo substancialmente menor, além da necessidade de cumprir a Norma, algo pode estar sendo subestimado.



Outro marcador importante são os índices de consumo. Estruturas usuais tem índices de consumo de materiais (espessura média de concreto, relação aço/concreto e área de formas por m2 de obra) conhecidos. A constatação de que seu projeto está dentro destes parâmetros é um indicativo favorável de validade do que você está fazendo. 



Ainda em termos de índices, a carga por m2 da edificação - também conhecida e usualmente da ordem de 1tf/m2 é outra verificação que reforça sua impressão de conformidade. 



Esbeltez da edificação: já participei de Projeto em que toda a equipe da Construtora debatia sobre o empreendimento olhando o Corte A-A. Se virassem a página e olhassem o B-B veriam um prédio vertiginosamente esbelto!



LUCAS: Sensacional Justino! Deixa eu te perguntar mais uma coisa, existe um termo conhecido como “maldição do conhecimento”. Significa mais ou menos o seguinte: depois que aprendemos uma coisa, muitas vezes, esquecemos como era “não saber” essa coisa, como era estar nessa posição de “não saber”. Eu entendo quando você diz “confie preliminarmente no seu bom senso, na sua intuição, no seu "olfato"”, no entanto, para um engenheiro que está começando, estas expressões podem não parecer muito palpáveis porque ele ainda não tem bagagem para agir assim. Baseado na sua experiência, o que você diria que um engenheiro que está começando precisa FAZER para desenvolver essas habilidades? Pode dar um exemplo prático? 



JUSTINO: Essa "maldição do conhecimento" de fato existe e é o motivo do fracasso de muito Professor que ensina como se o Aluno.... já soubesse. A magia do aprendizado se esvanece no ar. Como diz a Clarice Lispector, "o bom de aprender é ficar sabendo". 


Eu entendo a angústia de quem começa na profissão em formar e confiar na sua intuição. Com o tempo de exercício profissional essa angústia diminui, mas eu acho que mais por relaxação psicológica do que por suficiência...rs.



Vamos lá: inicialmente é preciso ter em mente que seu treinamento não começa no primeiro dia de formado, nem mesmo nos últimos anos do Curso. Ele se inicia bem no início da sua vida de estudante, quando você ainda está aprendendo os primeiros passos da matemática. Isso tudo é capital de conhecimento. 



Segundo: seu exercício de olfato, inicialmente se manifesta aplicado a questões simples, porém, eventualmente, altamente efetivas. Desde que você esteja preocupado em faze-las... 



Exemplo: Você olha uma viga e pensa: essa viga é simétrica. Consulta o detalhamento e encontra uma armadura nem um pouco simétrica. O que houve? Talvez, apesar da geometria e da carga simétricos no vão, os momentos nas extremidades sejam muito diversos...



Olhando outra viga, você pensa: essa viga deve ter uma enormidade de Cortante nessa extremidade. Você consulta a Armação e vê estribos substancialmente menores do que esperava. Talvez a proximidade das cargas com o apoio tenham contribuído para tanto. 



Resumindo: de fato, a intuição é inapelavelmente ligada ao tempo decorrido no exercício da profissão, mas lembre-se que a experiência não precisa ser somente sua, mas de toda a equipe com quem você trabalhar, onde, eventualmente, há pessoas mais experientes - talvez um coacher - mas, se você, quer se reportar efetivamente à sua experiência pessoal, console-se com o fato de que ela nunca é suficiente para ninguém - nem o mais vetusto dos Projetistas - e o importante para você adquirir um bom nariz é estar sempre cheirando.



Caso queira entrar em contato com o Eng. Justino Vieira aqui está o e-mail dele: [email protected]


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